quinta-feira, 2 de junho de 2011

Segunda parte




No segundo momento de Lira dos vinte anos, há uma inversão das diretrizes poéticas. Em vez do céu, há a Terra; no lugar da alma, o espírito; substituindo o anjo, a lavadeira, cujo corpo atrai para o pecado. Passa-se do lamento choroso para a ironia sarcástica.

Essas alusões são claramente enunciadas no prefácio da segunda seção. O poeta, lucidamente, aponta ao leitor as mudanças e apresenta até o panorama literário da época, citando importantes autores e obras que se colocam no interior da mesma dicotomia. Suas palavras:

“O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias – isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. (...)”

A reiterada afirmação do corpo, que se opõe ao espírito, indica uma mudança poética substancial. O poeta vai agora tentar descer ao mundo das coisas e tratar com humor – e não tristeza – de sua inadequação em relação a elas.

Apesar da mudança no tom, os temas continuam os mesmos: a irrealização do desejo amoroso, o conflito entre o eu e o mundo, a fuga para a morte. Tudo tangido por um prosaísmo mundano. Objetos do cotidiano do poeta, como um charuto, um cachimbo, o vestido de chita, um cigarro sarrento, ganham direito à existência poética.

O poeta foge para o estereótipo de um mundo real, ou seja, um mundo que existe, mas que de fato não é o seu. Sabe-se que Alvares de Azevedo era um filho de família rica que nunca passou por privações materiais. Por isso, ao tentar figurar a realidade das classes menos favorecidas (como nos poemas em que fala do amor a uma lavadeira ou do poeta sem dinheiro), opera, em outros moldes, uma idealização semelhante à da primeira parte. Em outras palavras, quando o poeta tenta romper com o misticismo da primeira parte, cai numa idealização às avessas, pois ainda se encontra preso às formas impostas pela estética romântica.

Primeira parte


O primeiro prefácio de Lira dos vinte anos é um importante elemento de compreensão dessa seção do livro. No texto, o poeta introduz uma perspectiva daquilo que o leitor encontrará nos poemas. São lamentos de um eu-lírico tímido e inexperiente, que se apresenta ao público: “São os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá não têm a doçura dos seus cânticos de amor.

É uma lira, mas sem cordas: uma primavera, mas sem flores, uma coroa de folhas, mas sem viço”. 
Percebe-se, nessas linhas iniciais do prefácio, a configuração de um eu-lírico que se apresenta num conjunto de antíteses sobre o fazer poético. É algo muito característico do romantismo esse dilaceramento do eu diante do mundo, que se traduz em contradições. Nota-se, pelas imagens do prefácio (lira, cânticos, canto, harmonia, vibrações), como o poeta elabora uma apresentação metalinguística, ou seja, que trata do próprio fazer poético.

A incapacidade de atingir a plenitude da beleza poética se traduz em uma repressão dos sentimentos de gozo. O tema do “medo de amar” ilustra de maneira exemplar o dilaceramento dramático da subjetividade poética. É bom lembrar que Alvares de Azevedo era um adolescente bem-nascido e sofria da típica dificuldade em conciliar o desejo carnal com o sentimento amoroso, situação bem comum à segunda geração romântica brasileira. Tome-se como exemplo os seguintes versos de O Poeta: 

Era uma noite – eu dormia 
E nos meus sonhos revia 
As ilusões que sonhei! 
E no meu lado senti... 
Meu Deus! por que não morri? 
Por que do sono acordei? 
No meu leito – adormecida 
Palpitante e abatida, 
A amante de meu amor! (...)
 

Nesse trecho, estão bem representados os temas principais da primeira parte do livro. Diante da impossibilidade de realizar seus impulsos, o eu-lírico sublima os desejos, refugiando- se em um mundo imaginário de virgens idealizadas, de anjos e de espuma. Para isso, a atmosfera noturna é o ambiente preferido: na noite, os contornos se desvanecem, os limites se desmaterializam.

O mesmo desejo de fuga para estados fluidos de semiconsciência explica a grande presença de imagens que sugerem o sono ou a morte. Os adjetivos antitéticos do penúltimo verso citado, “palpitante” e “abatida”, sugerem o conflito básico entre o impulso de vida (Eros) e o de morte (Tânatos). Essa ambiguidade se cristaliza no verso a seguir, em que “a amante” não se relaciona diretamente com o poeta, mas com seu amor. Trata-se de uma configuração quase exemplar do amor platônico, que não se dirige a outro ser, mas ao próprio ato de amar. É uma poesia de seres e idéias abstratos, imersos em uma noite nebulosa.

O eu-lírico sofre uma cisão interna que se reflete também num aspecto cronológico. Ele sente que sua alma – nutrida de vastas leituras – é velha, enquanto o corpo – desprovido de experiências amorosas – é ainda muito jovem. No poema Saudades, há um exemplo disso: 

Foi por ti que num sonho de ventura 
A flor da mocidade consumi, (...) 

A “mocidade”, ou juventude, foi “consumida” por outra que aparece ainda de forma indefinida e que se revelará, no decorrer do poema, um amor de infância do poeta, com quem ele lia romances e poemas e se sentia vivenciando grandes amores da literatura romântica. É o caso das citações dos personagens Carlota e Werther, Jocelyn e Laurence, que encarnam amores difíceis ou frustrados. A mesma fuga para o sono e para a morte é aqui a fuga para a literatura, que consome a juventude do poeta-leitor. O poema segue tratando dessa perda da mocidade: 

E às primaveras digo adeus tão cedo 
E na idade do amor envelheci!
 

Há aqui uma inversão do antigo tema do carpe diem (aproveita o dia). Diferentemente do uso clássico do tema, no qual um velho poeta olha para a juventude como o auge da beleza corpórea e trata da fugacidade do tempo, em Alvares de Azevedo um jovem olha para a velhice da alma. Ao fazer isso, sente as características da decrepitude do espírito humano. 



Ariel e Caliban


As poesias são escritas sob o signo das entidades místicas Ariel e Caliban, que foram tomadas emprestadas da peça A Tempestade, de William Shakespeare. Pode-se dizer que, grosso modo, Ariel representa a face do bem e Caliban, a do mal. Em Lira dos vinte anos, esses personagens encarnam as duas facetas exploradas pelo autor na primeira e na segunda partes do livro.

Com Ariel estão os temas caros ao Romantismo, como o amor, a mulher e Deus, trabalhados num viés platônico e sentimental. A mulher assume caráter sobre-humano de virgem angelical, objeto amoroso de um encontro que, para a angústia do eu-lírico, nunca se realiza. Caliban, por sua vez, é a face sarcástica, irônica e autocrítica do fazer poético. Sobressaem os temas da melancolia, da tristeza, da morbidez e de Satã.

A primeira parte recebe uma influência mais idealizada e terna, típica dos franceses Musset e Lamartine; a segunda, irônica e satânica, vem diretamente do poeta Lord Byron.

Crítica escrita por Machado de Assis


SEMANA LITERÁRIA:
(Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos)
Quando, há cerca de dois ou três meses, tratamos das Vozes da América do sr. Fagundes Varela, aludimos de passagem às obras de outro acadêmico, morto aos vinte anos, o sr. Álvares de Azevedo. Então, referindo os efeitos do mal byrônico que lavrou durante algum tempo na mocidade brasileira, escrevemos isto:
Um poeta houve, que apesar da sua extrema originalidade, não de receber esta influência a que aludimos, foi Álvares de Azevedo. Nele, porém, havia uma certa razão de consanguinidade com o poeta inglês, e uma íntima convivência com os poetas do norte da Europa. Era provável que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformação, de maneira a afirmar-se mais a sua individualidade, e a desenvolver seu robustíssimo talento.
A essas palavras acrescentávamos que o autor da Lira dos vinte anos exercera uma parte de influência nas imaginações juvenis. Com efeito, se Lord Byron não era então desconhecido às inteligências educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimarães já tinham trasladado para o português alguns cantos do autor de Giaour, uma grande parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, começaram a conhecer o gênio inglês através das fantasias de Álvares de Azevedo, e apresentaram, não sem desgosto para os que apreciam a sinceridade poética, um triste cepticismo de segunda edição. Cremos que este mal já está atenuado, se não extinto.
Álvares de Azevedo era realmente um grande talento; só lhe faltou tempo, como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e aquilo que era apenas reflexo alheio, impressão da juventude. Álvares de Azevedo, acabaria por afirmar a sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à imortalidade. Compara-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou, e ver-se-á que seiva poderosa não existia, naquela organização rara. Tinha os defeitos, as incertezas, os desvios, próprios de um talento novo, que não podia conter-se, nem buscava definir-se. A isto acrescente-se que a íntima convivência de alguns grande poetas da Alemanha e da Inglaterra produziu, como dissemos uma poderosa impressão naquele espírito, aliás tão original. Não tiramos disso nenhuma censura; essa convivência, que não poderia destruir o caráter da sua individualidade poética, ser-lhe-ia de muito proveito, e não pouco contribuiria para a formação definitiva de um talento tão real.
Cita-se sempre, a propósito do autor da Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron, como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta. O poeta fazia uma frequente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inspirou-lhe mais de uma página de versos. Amava Shakespeare, e daí vem que nunca perdoou a tosquia que lhe fez Ducis. Em torno desses dois gênios, Shakespeare e Byron, juntavam-se outros, sem esquecer Musset, com quem Azevedo tinha mais de um ponto de contacto. De cada um desses caíram reflexos e raios nas obras de Azevedo. Os Boêmios e O poema de frade, um fragmento acabado, e um borrão, por emendar, explicarão melhor este pensamento.
Mas esta predileção, por mais definida que seja, não traçava para ele um limite literário, o que nos confirma na certeza de que, alguns anos mais, aquela viva imaginação, impressível a todos os contactos, acabaria por definir-se positivamente.
Nesses arroubos da fantasia, nessas correrias da imaginação, não se revela somente um verdadeiro talento, sentia-se uma verdadeira sensibilidade. A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos vinte anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a inspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vaga aspiração. Os elos versos que deixou impressionam profundamente, “Virgem morta”, “À minha mãe”, “Saudades” são completas neste gênero. Qualquer que fosse a situação daquele espírito, não há dúvida nenhuma que a expressão desses versos é sincera e real. O pressentimento da morte, que Azevedo exprimiu em uma poesia extremamente popularizada, aparecia de quando em quando em todos os seus cantos, como um eco interior, menos um desejo que uma profecia. Que poesia e que sentimento nessas melancólicas estrofes!
Não é difícil ver que o tom dominante de uma grande parte dos versos ligava-se a circunstâncias de que ela conhecia a vida pelos livros que mais apreciava. Ambicionava uma existência poética, inteiramente conforme à índole dos seus poetas queridos. Este afã dolorido, expressão dele, completava-se com esse pressentimento de morte próxima, e enublava-lhe o espírito, para bem da poesia que lhe deve mais de uma elegia comovente.
Como poeta humorístico, Azevedo ocupa um lugar muito distinto. A viveza a originalidade, o chiste, o humor dos versos deste gênero são notáveis. Nos Boêmios, se pusermos de parte o assunto e a forma, acha-se em Azevedo um pouco daquela versificação de Dinis, não na admirável cantata de Dido, mas no precioso poema do Hissope. Azevedo metrificava às vezes mal, tem versos incorretos que havia de emendar sem dúvida; mas em geral tinha verso cheio de harmonia, e naturalidade, muitas vezes numeroso, mutíssimas eloquente.
Ensaiou-se na prosa, e escreveu muito; mas sua prosa não é igual ao seu verso. Era frequentemente difuso e confuso; faltava-lhe precisão e concisão. Tinha os defeitos próprios das estreias, mesmo brilhantes como eram as dele. Procurava abundância e caía no excesso. A ideia lutava-lhe com a pena, e a erudição dominava a reflexão. Mas se não era tão prosador como poeta, pode-se afirmar, pelo que deixou ver e entrever, quando se devia esperar dele, alguns anos mais.
O que deixamos dito de Azevedo podia ser desenvolvido em muitas páginas, mas resume completamente o nosso pensamento. Em tão curta idade, o poeta da Lira dos vinte anosdeixou documentos valiosíssimos de um talento robusto e de uma imaginação vigorosa. Avalia-se por aí o que viria a ser quando tivesse desenvolvido todos os seus recursos. Diz-nos ele que sonhava, para o teatro, uma reunião de Shakespeare, Calderon e Eurípedes, como necessária à reforma do gosto da arte. Um consórcio de elementos diversos, revestindo a própria individualidade, tal era a expressão de seu talento.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Bibliografia de Manuel Antônio Álvares de azevedo

Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu na cidade de São Paulo em 12 de setembro de 1831. Ainda criança transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, onde fez o curso primário. Em 1848, retornou a São Paulo e matriculou-se no curso de Direito.
Nessa cidade não se sabe ao certo como foi sua vida. Alguns dizem que viveu uma intensa e tumultuada vida boêmia, já outros falam que sua vida foi calma e serena. O que sabemos ao certo é que durante esse período sua produção poética foi muito intensa.
A partir de 1851 o poeta passa a ter fixação pela idéia da morte. Isso fica claro nas cartas destinadas à mãe e à irmã.
Em 25 Abril de 1852, quando tinha apenas 20 anos, Álvares de Azevedo morreu vítima de tuberculose, deixando uma obra relativamente extensa, para quem viveu tão pouco.
Álvares de AzevedoÁlvares de Azevedo, representante brasileiro mais legítimo do mal-do-século, foi fortemente influenciado por Lord Byron e Musset. Sua poesia é marcada pelo subjetivismo, melancolia e um forte sarcasmo. Os temas mais comuns são o desejo de amor e a busca pela morte. O amor é sempre idealizado, povoado por virgens misteriosas, que nunca se transformam em realidade, causando assim a dor e a frustração que são acalmadas pela presença da mãe e da irmã.
Já a busca pela morte tem o significado de fuga, o eu-lírico sente-se impotente frente ao mundo que lhe é apresentado e vê na morte a única maneira de libertação.
De sua obra, toda ela publicada postumamente, destacam-se os contos do livro "Noite na Taverna" (1855), a peça de teatro "Macário" (1855) e o livro de poesias "Lira dos Vinte Anos" (1853).
Fonte: www.algosobre.com.br